sexta-feira, 30 de maio de 2014

Arcanjo, a solidariedade e o ceticismo




Em uma quarta-feira de tarde nublada, no mês dedicado à louvação de Maria, a mãe de Jesus, Arcanjo pegou um ônibus para assistir mais um dia de aula. Como de costume encarou o velho engarrafamento, fruto da visão de modernidade que prefere mais carros na rua a um transporte público de efetiva qualidade.

Ao entrar no ônibus ele buscou um dos assentos da parte traseira do veículo, de forma a facilitar sua vida de estudante na hora da descida. Na terceira parada, Arcanjo percebeu que uma senhora batia insistentemente na porta traseira solicitando a abertura, por parte do condutor.

Como se não bastasse a qualidade do transporte público, o sistema econômico faz com que o motorista de ônibus, além de dirigir, tenha que receber o dinheiro pago pelos usuários ao entrar pela porta frontal do veículo, descartando, totalmente, a figura do cobrador. Essa nova atribuição do motorista confirma o dito popular de que ninguém pode servir a dois senhores.

Nesse caso, a vítima imediata do serviço dobrado foi a senhora que batia insistentemente na porta traseira. Ninguém no ônibus, muito menos Arcanjo, tomou a iniciativa de solicitar a abertura da porta.

Do lado de fora um cidadão resolveu bater com mais força até que o motorista resolveu abri-la. A senhora estava com uma criança de colo, a qual não dava para ser vista do local em que Arcanjo estava sentado. Nessa hora bateu-lhe um sentimento de culpa, ao mesmo tempo em que passou a refletir sobre as ações e reações humanas constatadas no dia a dia das ruas, ou assistidas no noticiário televisivo, mostrando a vida nas grandes cidades, em que pessoas são espancadas e mortas barbaramente.

Pegar ônibus era uma rotina comum para Arcanjo. Nesses tantos trajetos feitos, viu de tudo um pouco: aquele vendedor que o motorista não deixar entrar para vender suas balas, o ceguinho que não desperta a atenção em busca de subir no transporte para ganhar uns trocados...

Foi ai que Arcanjo, o usuário/estudante, pensou, “as ações de nós mesmos, seres humanos, estão fazendo com que deixemos de ser solidários uns com os outros e passemos ao estágio do medo. Se solicito a abertura da porta para aquela mãe que batia insistentemente para entrar no veículo, corria o risco de ser agredido, e sabe lá Deus as consequências disso”.

O medo fez de Arcanjo um cético. Agora se sentia um cidadão acuado, medroso, porque não dizer covarde. Acreditava que o mundo estava caminhando para o salve-se quem puder; para, primeiro eu, segundo eu, terceiro eu. Não foram esses os valores que ele tinha aprendido. Não foram esses os ensinamentos que lhe transmitiram.

Não podia aceitar passivamente que as ações e atitudes humanas tivessem o desfecho que se prenunciavam, deixando-lhe acuado e calado, estorvado pelo egoísmo e individualismo.

Inusitadamente Arcanjo levantou-se do banco em que estava, venceu o seu medo e gritou: não posso trocar a solidariedade pelo ceticismo. Todos olharam espantados.

Terminado o grito, Arcanjo solicitou parada para o ponto seguinte, desceu do ônibus e dirigiu-se à escola para mais um dia de aula.

Luiz Penha


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